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A reforma silenciosa: como a mudança tributária redesenha o poder e o futuro das cidades brasileiras
Uma mudança monumental está em curso no Brasil, e ela não acontece nas ruas, mas nas linhas de uma complexa emenda constitucional
Uma mudança monumental está em curso no Brasil, e ela não acontece nas ruas, mas nas linhas de uma complexa emenda constitucional. A Reforma Tributária, promulgada em 2023, não é apenas um ajuste de contas. É o redesenho do poder e do dinheiro como o conhecemos, extinguindo o Imposto Sobre Serviços (ISS) — a principal fonte de receita de mais de 5.500 cidades — e criando uma nova ordem fiscal centralizada.
Para o cidadão comum, isso pode parecer distante. Mas essa transformação silenciosa definirá a qualidade da escola do seu filho, o asfalto da sua rua e a capacidade da sua cidade de atrair empresas pelas próximas décadas. Estamos testemunhando o fim de uma era e o início de uma nova e feroz competição pelo futuro.
O Fim da “Guerra Fiscal”: Por que o Sistema Antigo Ruiu?
Imagine mais de 5.500 prefeituras, cada uma com sua própria lei para o mesmo imposto. Esse era o caos do ISS. Por décadas, essa fragmentação alimentou a chamada “guerra fiscal”: uma disputa predatória onde cidades ofereciam impostos baixíssimos para atrair a sede de grandes empresas.
O resultado? Uma corrida para o fundo do poço que gerava instabilidade, beneficiava poucos e criava um ambiente de insegurança jurídica tão grande que o volume de disputas judiciais sobre impostos chegou a ultrapassar 75% de toda a riqueza gerada no país. O sistema estava quebrado.
A solução da reforma é radical: acabar com cinco tributos (PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS) e substituí-los por um IVA-Dual, com o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) sendo compartilhado entre estados e municípios. A regra de ouro do IBS é a tributação no destino. Isso significa que o imposto será pago onde o serviço é consumido, e não onde a empresa está sediada. Com uma só canetada, o principal incentivo para a guerra fiscal desaparece.
A Corrida do Ouro Fiscal: A Batalha pela Receita do Futuro
A transição para o novo modelo não será imediata. Ela acontecerá de forma gradual entre 2029 e 2033, como mostra a tabela abaixo. E é aqui que nasce a nova competição.
Ano | Alíquota IBS (Proporção) | Alíquota ICMS/ISS (Proporção) |
---|---|---|
2029 | 10% | 90% |
2030 | 20% | 80% |
2031 | 30% | 70% |
2032 | 40% | 60% |
2033 | 100% | 0% (Extinto) |
A fatia que cada cidade receberá do bolo trilionário do IBS por 50 anos será calculada com base na sua arrecadação média de ISS no período de 2019 a 2026. Isso criou uma verdadeira “corrida pela receita”. Prefeituras de todo o país estão investindo pesado para fiscalizar mais e arrecadar o máximo possível agora, pois cada real a mais na conta hoje garante uma fatia maior do futuro. Quem ficar parado, corre o risco de ser permanentemente rebaixado no ranking fiscal do país.
O Novo “Dono” do Dinheiro: O Comitê Gestor
Para administrar essa fortuna, a reforma cria o Comitê Gestor do IBS (CG-IBS), uma nova e poderosa entidade sediada em Brasília. Ele será responsável por arrecadar, processar e distribuir a receita para todos os estados e municípios.
Embora descrito como um órgão técnico, sua natureza é profundamente política. O comitê não será apenas um “banco”; ele editará normas e julgará disputas, tornando-se uma espécie de “quarto poder” para as finanças locais. Naturalmente, a briga por seu controle é intensa, opondo a Frente Nacional de Prefeitos (FNP), que representa as grandes metrópoles, e a Confederação Nacional de Municípios (CNM), voz das cidades menores. O resultado dessa disputa definirá quem terá mais poder na nova ordem federativa.
Vencedores e Perdedores: O Novo Mapa Econômico
A mudança para a tributação no destino irá redistribuir a riqueza de forma massiva.
Os Vencedores: A grande maioria. Estima-se que 82% dos municípios brasileiros terão ganhos de arrecadação. Serão beneficiadas principalmente as cidades mais populosas que hoje são grandes centros de consumo, mas têm poucas sedes de empresas. O dinheiro finalmente seguirá o consumidor.
Os Perdedores: Um pequeno grupo de cidades que se tornaram ricas por serem “paraísos fiscais”. O caso de Barueri (SP) é emblemático. Com uma das menores alíquotas de ISS, a cidade atraiu gigantes da tecnologia e finanças, construindo um orçamento bilionário. Agora, esse modelo de negócio está com os dias contados. O imposto gerado em Alphaville sobre um serviço prestado a um cliente em outra cidade não ficará mais em Barueri.
O Futuro da Sua Cidade: Competir com Qualidade, Não com Imposto
Se a guerra fiscal acabou, como as cidades competirão? A resposta é simples: tornando-se lugares melhores para viver e fazer negócios. A reforma força os prefeitos a focarem no que realmente importa.
A nova competitividade municipal será baseada em um bom ambiente de negócios, menos burocracia e, acima de tudo, na qualidade dos serviços públicos. Cidades com melhor educação, saúde, segurança e infraestrutura atrairão não apenas empresas, mas os talentos que elas precisam. Em essência, a reforma alinha os incentivos: o caminho para a saúde fiscal de uma cidade não passará mais por manobras tributárias, mas pela excelência na gestão. O futuro está sendo construído, e ele premiará as cidades mais bem administradas.